“O final de outubro para a minha família é uma verdadeira tradição visitar a casa dos meus tios no interior de São Paulo. Desde que eu tinha mais ou menos uns 6 anos a gente sempre vai para que possamos aproveitar um pouco o feriadão do Dia de Finados, em 2 de novembro. Mas no ano passado não deu, tivemos que ficar em casa já que os meus pais precisaram fazer algumas reformas e estavam acontecendo algumas mudanças na fazenda, tivemos que consertar cercas e também o galinheiro, que estava completamente destruído por conta das fortes chuvas.

Na noite do dia 30 para 31 de outubro, quando normalmente já estaríamos curtindo a piscina na casa dos meus tios, a gente ficou sem luz em casa. Os fortes raios preocuparam a todos: eu, minha pequena irmã Cecília, de 6 anos, nosso primo Gustavo de 11 e meus pais. Por ser o filho mais velho, eu tive a responsabilidade de cuidar de minha irmã e do meu primo, que estavam bem assustados e preocupados com o apagão. Era mais ou menos nove da noite e, mesmo diante o pé d’agua, meus pais tiveram que sair por conta do grande barulho no galinheiro.

Em nossa pequena fazenda não havia muita terra e, mesmo sendo um bom pedaço de chão, era tudo muito perto e ficava bem fácil de saber o que estava acontecendo. Nossa casa fica perto da porteira, o galinheiro um pouco mais distante e o chiqueiro dos porcos um pouco mais distante, próximo ao nosso grande jardim, onde estão enterrados os antigos donos da casa: um casal de senhores de engenho que não tiveram filhos e tiveram a propriedade incorporada ao governo, que a leiloou alguns anos depois.

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Meus pais saíram: ele com uma espingarda e minha mãe com uma vassoura. O forte estrondo que escutamos vindo do galinheiro parecia ter sido um desmoronamento, mas meu pai preferiu levar a arma, caso precisasse se defender de algum animal ou de alguém mal intencionado. Eu, no auge dos meus 16 anos fiquei sentado à mesa, tentando ver o que acontecia lá fora. Uma hora havia se passado e meus pais ainda não tinham voltado. Distraído, me assustei com Cecília tocando em minha perna. “O que aconteceu? Você não vai lá ver eles?”

Mesmo bem pequena, minha irmã sempre foi muito esperta, mas eu não poderia sair para deixá-los ali, sozinhos. Gustavo logo se levantou me perguntando o que poderia ter acontecido. Eu os tranquilizei, dizendo que estava tudo bem, que não precisavam se preocupar. E, como era época de Halloween, sugeri contarmos histórias de terror para que a gente se distraísse. Gustavo foi o primeiro, contando suas falsas clássicas histórias de bravura contra aliens de uma outra dimensão. Cecília ficou muito assustada e me pediu para que eu sentasse na cama, junto com ela.

Me aproximei e disse: “Agora é a minha vez de contar!”. Eu não fazia ideia do que inventar para assustar os dois, daí me lembrei de uma história que havia lido há muitos anos que dizia que quando é época de Halloween, existe um portal entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Esse é o momento em que os demônios procuram invadir o mundo dos humanos e principalmente zombar de quem ainda está vivo. Minha história se chamava “esses serão os últimos olhos que você verá”.

Na história, existia um demônio que se aproveitava dos humanos distraídos para sugar suas almas através do olhar. Eu contei vários detalhes e inventei muitas mentiras para que eles ficassem assustados. Cecília logo começou a chorar e Gustavo não quis mais ouvir. O que minha irmã fez me deixou bem assustado: ela não parava de chorar apontando para mim, o que me fez imaginar que havia alguém atrás. Gustavo estava assustado e imóvel, pelo que eu conseguia perceber pela sua silhueta no escuro, algumas vezes clareadas pela luz dos relâmpagos.

Eu me virei rapidamente e não vi nada. Me levantei, tentando afastar o medo e ouvi um tiro. Era o meu pai? Ele teria acertado algum animal que lhe atacou ou alguém que tentava cometer algum crime?! Bom, ao ouvir isso, eu resolvi sair. Pedi para que eles ficassem lá na casa e resolvi ir ao galinheiro entender o motivo da demora e do disparo. Aquela era uma vizinhança calma, então dificilmente o tiro teria sido em alguém. Quando me aproximei do galinheiro, percebi que havia pisado em uma poça gosmenta, aparentemente algo bem nojento que eu não consegui identificar o que era.

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Entrei no galinheiro e ele foi iluminado imediatamente por aquela luz forte do relâmpago. Já haviam se passado duas horas desde que meus pais haviam saído e eu não fazia ideia de onde estavam. O galinheiro estava intacto: o som de desmoronamento parecia ter saído de outro lugar. Caminhei para os fundos e notei que havia mais daquela gosma que eu havia pisado vindo de lá. Cheguei mais perto e percebi que os túmulos estavam abertos. E nas lápides estavam escritos os nomes dos meus pais.

Senti uma estranha sensação e voltei correndo para a nossa casa. Fiquei sem entender o que poderia ter acontecido em meio a tanta lama, barulhos e túmulos. Entrei na casa e para a minha surpresa todos estavam deitados no chão da cozinha e aparentemente dormindo: meus pais, minha irmã e o Gustavo. Cheguei um pouco assustado e perguntei o que havia acontecido. Minha voz ecoou pelo cômodo e todos acordaram. Seus olhos estavam vermelhos, como os da história que eu havia contado e ao mesmo tempo os quatro vieram para cima de mim.

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O sentimento que eu tive durante aquele ataque foi assustador. Era como se meu corpo estivesse sendo destruído aos poucos por uma luz mais forte que tudo. Era como se o sol estivesse muito forte queimasse minha retina. Creio que eu tenha desmaiado, pois só lembro de ser arrastado por todo o caminho, em cima daquela mesma gosma que eu havia pisado. Eu notei que estava sendo levado para dentro da tumba quando comecei a me debater até finalmente conseguir sair daquele local. Eu não enxergava nada, somente algumas formas escuras, provavelmente demônios ou algo assim.

Tateando, rastejando e me sentindo acompanhado por uma presença ruim, eu conseguir entrar na casa. Àquelas alturas eu já estava banhado de lama e de tudo quanto é porcaria de porco e galinha. Deitei-me no chão da cozinha. Só conseguia enxergar parte daquela parede amarela reluzindo durante a chuva, relâmpagos e raios. Não lembro como consegui dormir, mas acordei no outro dia pela manhã quando João e os outros trabalhadores me encontraram caído no chão da casa. Inicialmente eu não entendi o motivo pelo qual eles chamaram a polícia.

Mas aparentemente o motivo foi o sumiço da minha família nunca será solucionado: eu fui acusado pela morte deles. Eu falo isso muito triste por não saber nem como me defender. Eu perdi 90% da visão e eles me internaram num manicômio judiciário por assassinato com requintes de crueldade deles quatro. Nenhum defensor público vai conseguir me tirar daqui, já estou há um ano preso sem julgamento e me ameaçam muito aqui dentro.”

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Os “olhos” vistos de fora

Essas foram as palavras ditas pelo meu último entrevistado no Manicômio João Chagas. Ele se chama Jonas Silva e está preso lá desde o ano passado, quando foi acusado de assassinar a própria família. A principal prova de que ele era o culpado foi ter encontrado deitado na cozinha de casa com o corpo completamente coberto de sangue. Também foi encontrado o DNA dos parentes debaixo das unhas do jovem. A arma do pai foi encontrada ao lado dele e uma cápsula foi encontrada próximo aos túmulos dos antigos donos, que estavam vazios e com buracos muito profundos.

Até hoje não se sabe o motivo pelo qual ele perdeu a visão, mas os psiquiatras acreditam que ele tenha tentado se matar, já que várias marcas foram encontradas no corpo dele. Os corpos até hoje não foram encontrados. No final da entrevista ele abriu o jogo sobre um possível problema mental.

“Todas as noites, a mulher de olhos vermelhos vem até mim e diz que eu ainda a enxergo porque eles possuem um plano para meu futuro”. Talvez essa fala releve que Jonas Silva ainda esteja planejando um novo crime. Mas ele não terá como colocar isso em prática, está preso e sendo dopado há um ano e deverá ser assim pelos próximos em que estiver vivo.