Em 1928, o governo turco decidiu mudar o seu alfabeto. O antigo sistema de linguagem do país usava a escrita árabe, que era muito estranha na aparência e era extremamente difícil de dominar. Para se ter uma ideia, muitos estrangeiros que moravam na Turquia há anos e podiam falar turco fluentemente não conseguiam soletrar nem ler placas de rua.

Por causa disso, a Turquia decidiu adotar o script em latim, como centenas de outras línguas já adotam. No entanto, o que pouca gente sabia era que essa mudança traria consequências bastante bizarras, como uma grande polêmica envolvendo o povo curdo e até mesmo a proibição das letras Q, W e X do alfabeto.

Ficou curioso para saber o desenrolar dessa história inusitada? Então continue lendo para descobrir uma peculiaridade bastante curiosa do alfabeto e da própria cultura da Turquia.

O início da mudança

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Presidente Mustafa Kemal Atatürk apresentando o novo alfabeto turco ao povo de Kayseri em 20 de setembro de 1928.

“A língua turca é prisioneira há séculos e agora está finalmente sendo liberada das correntes”, declarava o presidente Mustafa Kemal Atatürk na agitada década de 1920 na Turquia. Segundo ele, a adoção do alfabetos latino tornaria a língua turca inteligível para o mundo ocidental, o que ajudaria o país a avançar junto com as nações mais progressistas. De fato, o antigo alfabeto árabe era um um pesadelo para os tipógrafos, pois tinha quase quinhentos caracteres. Por outro lado, o novo alfabeto turco teria apenas 29 caracteres, que seriam os seguintes:

A B C Ç D E F G Ğ H I İ J K L M N O Ö P R S Ş T U Ü V Y Z

Como você pode ver, ele é semelhante ao alfabeto português, até porque ambos usam o mesmo script latino. Alguns caracteres especiais (aqueles com sinais diacríticos) foram adicionados para acomodar as nuances da pronúncia turca. Mas o que mais chama a atenção é que três letras que a administração considerava redundantes foram descartados. Essas letras são Q, W e X. O argumento era que esses caracteres poderiam ser escritos usando as letras K, V e KS, respectivamente. Então “taxi” se tornou “taksi” e “Noruz”, o Ano Novo Persa, tornou-se “Nevruz”.

A complicada tarefa de mudar uma língua

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Estátua em Istambul mostrando o presidente Mustafa Kemal Atatürk apresentando o novo alfabeto turco a uma criança.

Com a definição do novo alfabeto, surgiu a difícil tarefa de atualizar todas as placas das centenas de milhares de vias em todo o país. Nomes de ruas, lojas, pontos de ônibus, estabelecimentos comerciais, estações ferroviárias, todos precisavam ser escritos de acordo com o novo alfabeto. Jornais jogaram fora os tipos antigos, documentos oficiais foram atualizados e livros didáticos foram reimpressos, enquanto que as esquinas eram inundadas com cartilhas de papel ensinando o novo alfabeto.

Todos os cidadãos entre 16 a 40 anos foram obrigados a aprender o novo alfabeto e até mesmo novas escolas chegaram a ser abertas para esse fim. Somente em Istambul, quase 200 mil homens e mulheres estavam matriculados nas aulas. O próprio Kemal embarcou em uma excursão pela Anatólia promovendo a mudança, realizando maciços tutoriais quase teatrais e organizando marchas “em nome do novo alfabeto”.

Mudar a linguagem escrita de uma nação inteira de 14 milhões de pessoas no espaço de algumas semanas foi uma conquista educacional notável. Só que, embora a maioria delas tenha trabalhado alegremente na tarefa de aprender os novos ABCs, muitas pessoas lamentaram a perda do belo alfabeto árabe, cujos caracteres formavam grande parte da decoração das mesquitas. Foi a partir daí que alguns problemas começaram a surgir.

A polêmica envolvendo os curdos e a tal “lei do alfabeto”

Quando Mustafa Kemal Atatürk omitiu os caracteres latinos Q, W e X do alfabeto turco, ele não apenas dispensou os três, mas os proibiu completamente, tornando seu uso em público uma verdadeira “ofensa”. Na prática, só era possível usar legalmente essas letras caso elas fizessem parte de uma palavra derivada do inglês ou de outros idiomas.

Os curdos, que representam cerca de 20% da população turca, foram os que mais sofreram o impacto da “lei do alfabeto”, pois utilizavam os três caracteres proibidos muito mais do que os turcos. De certo modo, os curdos sempre tiveram sua própria língua e seu próprio alfabeto, mas até os anos 90 eles também haviam sido banidos. O turco era (e ainda é) a única língua oficial do país, o que forçou os curdos a usar o novo alfabeto turco.

O mais curioso disso tudo é que, sem a possibilidade de usar os caracteres Q, W e X, muitos curdos tiveram que mudar de nome simplesmente porque esses alfabetos não eram permitidos em seus documentos de identificação oficiais. Para piorar a situação, o governo turco tem uma longa história de discriminação contra os curdos, o que levou muita gente a acreditar que a restrição das letras poderia ser apenas uma outra forma de reprimir culturalmente esse grupo minoritário na demografia do país.

O desfecho de toda a confusão

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Protestantes curdos em manifestação em Istambul.

Tudo isso teve um final feliz em outubro de 2013, quando o governo turco finalmente suspendeu a proibição das letras Q, W e X. Embora oficialmente essas letras ainda continuem de fora do alfabeto turco, o fato é que agora não é mais proibido usá-las em qualquer tipo de escrita. Além disso, nos últimos anos, o governo tem relaxado as restrições ao aprendizado dos dialetos curdos.

Em 2009, o governo da Turquia também começou a operar uma estação de televisão especialmente voltada ao povo curdo. Anteriormente, apenas canais de televisão privados podiam transmitir programas com temas curdos, restritos a apenas 45 minutos por dia ou quatro horas por semana. Além disso, em 2012, as aulas de língua curda, que só eram possíveis em instituições privadas, tornaram-se uma matéria eletiva nas escolas públicas.

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